Durante muito tempo, a inovação interna foi tratada como responsabilidade exclusiva das áreas de negócios, da TI ou dos laboratórios de inovação. O RH, nesse modelo, aparecia apenas nas pontas: treinando pessoas ou ajudando a contratar alguém mais “criativo”. Mas esse modelo está ultrapassado.
Hoje, sabemos que não existe cultura de inovação sem gestão intencional do comportamento, da motivação, das estruturas de reconhecimento e das experiências de desenvolvimento. E tudo isso é competência central do RH.
Mais do que suporte, o RH precisa ser coautor dos programas de intraempreendedorismo. Isso significa não apenas ajudar a operacionalizar treinamentos ou construir formulários de inscrição, mas atuar como designer do ecossistema de talento inovador: desde a identificação dos perfis intraempreendedores até a arquitetura de trilhas de progressão e mecanismos de engajamento de longo prazo.
Essa transformação exige que o RH também se veja — e seja visto — como uma área estratégica de inovação. E para isso, é preciso fazer três movimentos fundamentais: reposicionar sua função, redesenhar suas práticas e reequilibrar suas prioridades.
Vamos começar por entender por que esse reposicionamento é urgente — e o que ele envolve.
Por que o RH precisa entrar no jogo da inovação
O RH é a área que mais entende de gente — mas, paradoxalmente, muitas vezes fica de fora das iniciativas mais ambiciosas de intraempreendedorismo. Isso acontece por três motivos principais:
- Histórico operacional: o RH tradicional foi educado para garantir conformidade, reduzir riscos e manter estabilidade. Mas inovação precisa de liberdade, risco e movimento.
- Visão fragmentada da inovação: quando a empresa entende inovação apenas como tecnologia ou novos produtos, não vê como o RH pode contribuir. Mas quando enxerga a inovação como um comportamento organizacional e uma competência transversal, tudo muda.
- Falta de integração com a estratégia: o RH, em muitas empresas, ainda atua mais como executor do que como formulador de estratégia. Isso o impede de antecipar tendências, desenhar jornadas de crescimento conectadas ao futuro e influenciar decisões-chave.
Para que isso mude, o RH precisa assumir que é um dos principais motores do intraempreendedorismo. Ele é quem cuida do clima de segurança psicológica, da seleção de líderes com perfil de experimentação, do reconhecimento que sustenta a cultura, das trilhas que formam os intraempreendedores — e da permanência desses talentos na organização.
De executor de processos a designer de experiências
Uma das mudanças mais importantes no papel do RH é o deslocamento do foco em processos padronizados para a construção de experiências organizacionais significativas. Isso vale, especialmente, no campo da inovação.
Programas de intraempreendedorismo não precisam apenas de regras claras — precisam de experiências que estimulem a autonomia, a colaboração e o pertencimento. E o RH tem todas as ferramentas para desenhar essas experiências:
- Pode mapear e desenvolver perfis intraempreendedores com base em dados comportamentais;
- Pode construir jornadas formativas personalizadas, em vez de capacitações genéricas;
- Pode implementar sistemas de reconhecimento alinhados à cultura de risco construtivo;
- Pode garantir que os líderes sejam preparados para sustentar a inovação nas suas equipes;
- E pode medir impacto não apenas com base em indicadores de desempenho, mas de engajamento, evolução de competências e aprendizado coletivo.
Esse movimento exige que o RH se aproxime das áreas de negócio, escute os times, entenda os desafios reais dos programas de inovação e atue como parceiro na construção da experiência intraempreendedora de ponta a ponta.
Parte 2: Práticas de RH que impulsionam (ou travam) o intraempreendedorismo
Quando o RH assume o papel de arquiteto de experiências, ele passa a operar em múltiplas frentes que influenciam o comportamento inovador de forma direta. Se cada uma dessas frentes for trabalhada de maneira intencional, elas funcionam como alavancas do intraempreendedorismo. Se forem deixadas no automático, tornam-se barreiras invisíveis.
Vamos aprofundar cinco delas: seleção, desenvolvimento, performance, reconhecimento e mobilidade.
1. Seleção: atrair e identificar potenciais intraempreendedores
Tudo começa antes mesmo da inovação acontecer. O RH, como guardião dos processos seletivos e das estratégias de atração de talentos, precisa alinhar-se à pergunta:
Estamos contratando para manter o status quo ou para desafiar os nossos próprios limites?
Intraempreendedores não são necessariamente os mais criativos no papel, nem os mais experientes. Eles são, acima de tudo, curiosos, resilientes, colaborativos e orientados a impacto. E esses atributos dificilmente aparecem em currículos tradicionais.
Processos seletivos alinhados à cultura de inovação devem observar:
- Como o candidato lida com ambiguidade e pressão construtiva;
- Sua capacidade de formular boas perguntas — não só de apresentar respostas;
- O quanto ele ou ela demonstra autonomia sem perder o senso de coletividade;
- O histórico de iniciativas (dentro ou fora de ambientes formais);
- E o apetite por aprender com o erro.
Algumas empresas, como a Sem Parar e a Roche, já vêm utilizando casos reais de inovação interna como parte do processo seletivo, convidando os candidatos a explorar soluções em grupo, mapear stakeholders ou redesenhar processos com base em hipóteses.
O RH que inova na seleção alimenta o programa de intraempreendedorismo com diversidade, frescor e repertório.
2. Desenvolvimento: formar intraempreendedores como uma competência organizacional
Intraempreendedorismo pode ser um traço comportamental, mas é também uma competência que se aprende. E o RH é quem detém os meios para criar trilhas formativas personalizadas, conectadas à jornada real dos participantes.
É importante abandonar a ideia de que uma palestra ou um workshop de ideação são suficientes. O que forma um intraempreendedor é:
- Experimentar sob orientação segura;
- Receber feedback útil em momentos críticos;
- Aprender a lidar com a complexidade do sistema interno;
- E conectar suas ideias com o negócio real da empresa.
RHs mais maduros no apoio à inovação já operam com modelos de microformação em tempo real, combinando teoria aplicada com sprints de inovação. Também integram formação técnica com desenvolvimento emocional, como comunicação não violenta, negociação de conflitos e gestão de ansiedade em ambientes de incerteza.
Desenvolver inovação não é treinar apenas para criar soluções, mas para sustentar o processo emocional da criação.
3. Avaliação de performance: o sistema que precisa deixar de punir o risco
É aqui que muitas organizações escorregam. Mesmo com programas inovadores e incentivos à criatividade, os sistemas de avaliação continuam operando sob uma lógica clássica de eficiência operacional. O resultado? Colaboradores inovam nos hackathons, mas se retraem no dia a dia — com medo de que o tempo “investido” na inovação prejudique suas metas formais.
O RH pode mudar isso ao:
- Incluir comportamentos de intraempreendedorismo nos sistemas de avaliação de desempenho;
- Reconhecer a contribuição para o ecossistema de inovação (mesmo sem entrega final);
- Medir progressos individuais em termos de colaboração, curiosidade, resiliência e aprendizagem.
Algumas empresas, como a Bosch, criaram avaliações específicas para os ciclos de inovação, separadas da avaliação anual, para evitar sobreposição de critérios e garantir foco no comportamento inovador.
Se inovar parece “arriscado para a carreira”, o programa já começa com o freio puxado. O RH tem o poder — e a responsabilidade — de mudar esse código invisível.
4. Reconhecimento: mostrar que vale a pena tentar
Já discutimos em artigos anteriores a importância do reconhecimento simbólico, relacional e institucional. Aqui, o ponto é que o RH é quem mais pode estruturar o reconhecimento como prática recorrente, e não como um evento isolado.
Isso inclui:
- Inserir intraempreendedores reconhecidos nas trilhas de desenvolvimento acelerado;
- Criar indicadores de performance de líderes ligados ao estímulo à inovação em seus times;
- Usar os programas de inovação como fonte para o pipeline de sucessão.
Mais do que premiar projetos, o RH deve valorizar pessoas que demonstraram coragem, método e colaboração ao intraempreender.
5. Mobilidade: garantir que o talento inovador circule, e não se perca
Quando um projeto termina — seja com êxito ou com interrupção —, o que acontece com o time que o criou?
Muitas vezes, essas pessoas voltam para suas funções anteriores, onde não há espaço para continuar desenvolvendo ideias. Com o tempo, se desmotivam. E, em casos mais graves, pedem para sair. Isso representa um enorme desperdício de energia, conhecimento e cultura.
O RH precisa antecipar esse momento e criar caminhos de mobilidade conectados à inovação. Isso pode significar:
- Criar posições híbridas entre área técnica e inovação;
- Promover movimentações temporárias para projetos especiais;
- Estimular que líderes convidem intraempreendedores para novos desafios transversais.
Quando o RH entende que um ciclo de inovação bem-feito não termina com o projeto, mas com a valorização do talento que o protagonizou, ele transforma o intraempreendedorismo em ativo de longo prazo.
Parte 3: RH como guardião da cultura de inovação
Nenhuma iniciativa de intraempreendedorismo sobrevive, por muito tempo, em uma cultura que a repele. O comportamento inovador não se sustenta apenas por vontade individual — ele depende de um sistema simbólico, relacional e institucional que o permita florescer.
E nesse ponto, o RH ocupa um lugar único. É ele quem cuida das narrativas, dos rituais, dos sistemas de recompensa, da linguagem, da coerência entre o discurso e a prática — ou seja, dos pilares invisíveis que formam o campo onde a cultura vive.
Quando o RH assume esse papel com intencionalidade, ele deixa de ser um executor de processos e passa a ser um guardião da coerência cultural da organização. E coerência, no contexto do intraempreendedorismo, significa garantir que os comportamentos inovadores:
- Sejam estimulados, e não punidos;
- Sejam reconhecidos, e não invisibilizados;
- Sejam praticados, e não apenas discursados.
Vamos explorar agora três frentes em que o RH pode atuar diretamente como hub de transformação cultural.
1. Influenciar lideranças como multiplicadores da cultura intraempreendedora
Nada molda mais a cultura do que o comportamento das lideranças. E nenhum programa de inovação será bem-sucedido se os líderes diretos dos colaboradores não acreditarem — ou não souberem como apoiar — a iniciativa.
É papel do RH preparar esses líderes para deixar de serem chefes de execução e se tornarem facilitadores da descoberta. Isso começa por uma mudança de mentalidade: reconhecer que o líder não precisa ter todas as respostas, mas precisa criar um ambiente onde perguntas possam ser feitas.
O RH pode (e deve):
- Formar líderes em escuta ativa, segurança psicológica e tomada de risco estruturada;
- Co-construir, com os gestores, planos de desenvolvimento de equipe que contemplem ciclos de inovação;
- Criar sistemas de avaliação que incluam o estímulo à inovação como responsabilidade de liderança;
- Facilitar comunidades de prática entre líderes para troca de experiências sobre gestão de equipes em ambientes inovadores.
A liderança é o canal por onde a cultura se manifesta no dia a dia. O RH que transforma esse canal, transforma o sistema.
2. Incorporar a inovação nos sistemas formais da organização
Uma das maiores contradições em empresas que desejam inovar é que seus sistemas de gestão de pessoas continuam operando sob uma lógica de estabilidade e controle. Enquanto os discursos falam de experimentação e adaptabilidade, os sistemas recompensam conformidade e previsibilidade.
O RH precisa fazer um trabalho de “engenharia cultural” e revisar como a inovação aparece — ou não — nos sistemas formais da empresa:
- Nos critérios de promoção;
- Nos indicadores de desempenho;
- Nos manuais de liderança;
- Nos ciclos de avaliação;
- Nos processos de sucessão.
Não basta falar de cultura de inovação em campanhas institucionais. É preciso que ela esteja entranhada nas estruturas organizacionais, como algo esperado, recompensado e normativo.
Isso significa, por exemplo, revisar políticas de tempo dedicado à inovação, repensar metas que sufocam a criatividade, e garantir que projetos inovadores tenham caminhos claros de continuidade — inclusive na lógica orçamentária da empresa.
3. Cultivar os símbolos e rituais da inovação
Cultura não é o que a gente declara — é o que a gente repete. E quem define o que se repete, de forma intencional ou não, é o RH.
Rituais de inovação, símbolos de reconhecimento, histórias compartilhadas e espaços dedicados à cocriação não são cosméticos — são ferramentas culturais. Elas moldam o imaginário coletivo da organização sobre o que é possível, quem são os heróis, e o que vale a pena perseguir.
O RH pode atuar como curador da memória viva da inovação interna, ao:
- Criar repositórios de histórias inspiradoras de intraempreendedores;
- Estruturar rituais regulares de compartilhamento de aprendizados, mesmo de projetos não escalados;
- Cuidar da linguagem organizacional, substituindo expressões punitivas por vocabulário de aprendizagem;
- Estimular a construção de símbolos visuais e espaços de cocriação que comuniquem abertura, confiança e experimentação.
Essas ações, somadas, criam um campo simbólico fértil para o intraempreendedorismo se tornar parte do DNA da organização.
Considerações finais: o RH como eixo da transformação cultural
O intraempreendedorismo não se sustenta como política de inovação — ele se sustenta como política de cultura. E a cultura é o território do RH.
Quando o RH assume seu papel como estrategista da transformação comportamental, ele deixa de ser uma área de apoio e se torna o eixo de sustentação da capacidade adaptativa da empresa. Ele não apenas forma intraempreendedores — ele forma ambientes onde eles podem existir.
As empresas que desejam inovar de forma consistente precisarão, cada vez mais, de RHs que saibam transitar entre o humano e o estratégico, entre o micro e o sistêmico, entre a complexidade do comportamento e a precisão da arquitetura organizacional.
O RH que assume esse lugar não apenas fortalece o intraempreendedorismo — fortalece o futuro.