Toda organização, em algum momento de sua trajetória, deseja ser mais inovadora. Essa aspiração costuma surgir em respostas à pressão competitiva, à chegada de novos entrantes, à necessidade de reter talentos ou à vontade genuína de evoluir.
A boa notícia é que essa intenção é legítima. A má notícia é que, na maioria dos casos, ela morre no choque com o sistema.
Não por falta de ideias. Nem por escassez de talentos. E muito menos por ausência de discurso. A inovação morre porque a organização — apesar de querer mudar — foi construída para permanecer como está.
Essa é a natureza paradoxal das organizações: elas precisam inovar, mas foram projetadas para reduzir risco, manter eficiência, preservar estruturas e proteger o que já funciona. E quanto mais bem-sucedida é a organização em sua lógica atual, mais difícil se torna abandonar essa lógica para experimentar algo novo.
O resultado é um fenômeno conhecido por quem vive o intraempreendedorismo na prática: o ambiente diz que quer inovação, mas reage com resistência quando ela começa a acontecer. Essa resistência raramente é explícita. Ela se manifesta por meio de sistemas invisíveis de inércia institucional, pequenos bloqueios cotidianos, desconfianças veladas, decisões adiadas, critérios incoerentes.
Este artigo é um convite para olhar essas barreiras com coragem e lucidez. Para nomeá-las. E, assim, começar a redesenhar o sistema que hoje trava — e amanhã pode sustentar — a inovação por dentro.
A ilusão do apoio e a prática do bloqueio
Uma das experiências mais comuns relatadas por intraempreendedores é a sensação de que a liderança apoia a inovação apenas até ela incomodar. No início, todos se animam com a ideia de pensar diferente. Mas quando o projeto exige mudar um processo, mobilizar um orçamento não previsto, ou desafiar a autoridade de uma área tradicional, o apoio desaparece.
O que está acontecendo, nesse momento, é o choque entre duas lógicas organizacionais: a da exploração (inovação, aprendizado, risco, descoberta) e a da exploração (eficiência, repetição, controle, entrega). Ambas são necessárias. Mas uma vive à base de liberdade. A outra, de previsibilidade.
O problema é que a maioria das empresas foi inteiramente desenhada para a lógica da exploração. Seus sistemas de gestão, seus fluxos de orçamento, suas estruturas hierárquicas, seus ritos de performance, seus sistemas de poder — todos operam segundo o princípio da estabilidade.
A inovação, ao surgir, ameaça esse equilíbrio. Ela força o sistema a reconsiderar premissas, abrir mão de certezas, aceitar hipóteses em vez de garantias. E como o sistema não foi desenhado para isso, sua reação mais comum é a defesa.
A estrutura como inércia institucional
É preciso reconhecer um fato essencial: as organizações não são neutras. Elas moldam o comportamento das pessoas. Quando a estrutura favorece a repetição, punindo o erro e valorizando apenas entregas previsíveis, os colaboradores aprendem — rápida e inconscientemente — a não experimentar.
Essa aprendizagem é tão poderosa que dispensa qualquer repressão explícita. O silêncio, o esquecimento e a burocracia bastam para fazer com que ideias deixem de ser propostas.
E essa estrutura não está apenas nas regras formais. Ela está:
- Nos sistemas de orçamento, que alocam todos os recursos no início do ano, sem espaço para flexibilidade ou experimentação emergente;
- Nas regras de compras, que não permitem aquisições rápidas ou contratos provisórios para testar um fornecedor em pequena escala;
- Nos sistemas de TI, que exigem homologação completa para qualquer ambiente de teste, inviabilizando prototipagens ágeis;
- Nos modelos de avaliação de performance, que premiam apenas a entrega e ignoram a aprendizagem;
- Na linguagem de risco adotada pela empresa, que considera o novo como ameaça, e não como oportunidade.
Esse conjunto de mecanismos cria o que podemos chamar de ambiente de baixa adaptabilidade estrutural. É o tipo de organização que quer mudar, mas não consegue — porque tudo nela foi desenhado para manter o que existe.
O tempo como espelho da prioridade real
Outra barreira crítica — e talvez a mais subestimada — é o tempo. O que fazemos com o tempo diz mais sobre nossas prioridades do que qualquer discurso.
Quando um colaborador é convidado a participar de um programa de intraempreendedorismo, mas continua sendo cobrado por suas entregas como se nada tivesse mudado, a mensagem recebida é clara: inovar é algo que você faz nas horas vagas. Se conseguir.
Isso é profundamente desmobilizador. Não porque o colaborador é resistente. Mas porque ele entende que está sendo chamado a correr riscos sem proteção institucional. Ele sabe que, se algo der errado, ele será o responsável — mesmo tendo feito o que foi pedido.
Esse tipo de contradição destrói, silenciosamente, a confiança organizacional. E sem confiança, não há inovação que sobreviva.
A superação dessa barreira começa quando a empresa aloca tempo real e formalizado para a inovação. Isso significa liberar parte da carga horária, ajustar metas, flexibilizar indicadores e reconhecer, de forma clara, que a descoberta é tão valiosa quanto a entrega.
O medo travestido de responsabilidade
Finalmente, precisamos falar sobre o medo. Sim, o medo. Ele está presente nas lideranças, nas áreas de suporte, nos próprios colaboradores. E não é um medo irracional — é o medo de arriscar o que já funciona, de errar publicamente, de se expor num ambiente que valoriza certezas.
O problema é quando esse medo é mascarado como responsabilidade. Quando justificamos a recusa em testar algo novo dizendo que “não temos margem para errar”, “não podemos comprometer a operação” ou “isso precisa ser muito bem analisado antes de tentar”.
É claro que responsabilidade importa. Mas inovação, por definição, é um exercício de responsabilidade com o futuro — e não apenas com o presente. Exige coragem institucional. E exige uma nova definição de erro: não como falha de competência, mas como parte do processo de descoberta.
Empresas que conseguem transformar esse medo em aprendizado coletivo constroem culturas inovadoras de verdade. As outras, mantêm sua eficiência — até que o mundo mude mais rápido do que elas conseguem se adaptar.
Na próxima parte deste artigo, vamos explorar como redesenhar o sistema organizacional para proteger e sustentar a inovação, apresentando estratégias práticas como zonas de exceção, interfaces inteligentes, acordos institucionais e pequenas subversões produtivas que permitem que o novo sobreviva e se torne o próximo normal.
Redesenhando o sistema para sustentar o novo
Reconhecer as barreiras sistêmicas da inovação é só o primeiro passo. O segundo — e muito mais desafiador — é compreender que essas barreiras não são erros de gestão, mas escolhas de design. Foram construídas ao longo do tempo, com base em necessidades reais de controle, eficiência e estabilidade. E, por isso mesmo, não serão superadas com campanhas de criatividade ou eventos inspiracionais.
O que precisa ser feito é mais profundo e mais técnico: mudar o design organizacional para incorporar zonas de flexibilidade, pactos claros de exceção, estruturas intermediárias e sistemas paralelos que funcionem como “incubadoras de futuro” dentro da lógica do presente.
Essa mudança não significa destruir o que já existe. Significa criar interfaces inteligentes entre o que a empresa é e o que ela pode se tornar. Vamos explorar agora quatro estratégias de redesenho que vêm sendo aplicadas por organizações inovadoras — e que podem inspirar gestores a adaptar suas próprias estruturas com coragem e inteligência.
1. Criar zonas de exceção com regras claras
Uma das formas mais eficazes de permitir que a inovação floresça sem colidir com a operação é estabelecer zonas de exceção protegidas institucionalmente. Essas zonas funcionam como ambientes com regras próprias, onde é possível experimentar com mais liberdade e menos atrito.
Essas zonas não são espaços de anarquia — são espaços de regulação diferenciada. Dentro delas, o ritmo, os critérios de decisão e os processos são ajustados à lógica da descoberta, e não da eficiência.
Isso pode assumir várias formas: desde um laboratório de inovação com autonomia de compra e orçamento até um regime de trabalho flexível para squads em ciclos de experimentação. O que importa é que o sistema reconheça, formalmente, que nessas zonas o erro é permitido, o tempo é outro e o valor está no aprendizado.
Um exemplo inspirador é o Grupo Boticário, que criou o “BTG Inova”, um espaço com governança simplificada, acesso direto a decisores e metas orientadas a validação de hipóteses — e não a entregas operacionais.
O sucesso de zonas como essa está em dois fatores:
- Claridade institucional (todos sabem que ela existe e por quê);
- Conexão com o core (os aprendizados voltam para a organização principal, não ficam isolados).
2. Estabelecer novas interfaces organizacionais
Outra estratégia poderosa é o redesenho das interfaces entre áreas de suporte (como jurídico, compras, finanças, TI) e as iniciativas de inovação.
Essas áreas são frequentemente vistas como “burocráticas” — e, de fato, muitas vezes travam processos. Mas a culpa raramente é das pessoas. O que acontece é que essas áreas foram desenhadas para proteger a organização do risco — e não para facilitar a experimentação.
Superar essa tensão exige mais do que boa vontade. Exige criar uma nova lógica de interação.
Isso pode ser feito por meio de:
- Gatekeepers especializados em inovação dentro das áreas de suporte, com autonomia para adaptar regras a contextos de teste;
- Protocolos de exceção mapeados, que indicam o que pode ser flexibilizado e em que condições;
- Canais diretos de negociação entre projetos e áreas de suporte, com ciclos curtos e objetivos claros.
Na Raízen, por exemplo, a equipe de inovação trabalhou junto ao jurídico para criar um “framework de testes seguros”, com cláusulas pré-aprovadas para contratos de prototipagem com startups — reduzindo o tempo de validação de semanas para dias.
Esse tipo de reengenharia institucional não apenas acelera os processos, mas fortalece a confiança entre as áreas e amplia a maturidade da organização na gestão de risco criativo.
3. Construir estruturas intermediárias de transição
Um erro comum em empresas que desejam inovar é forçar a integração imediata de projetos experimentais no core da operação. Isso costuma gerar rejeição.
A lógica da operação é manter a roda girando. A lógica da inovação é testar se a roda pode ser substituída. Juntar essas duas lógicas antes da hora é um convite ao conflito — ou à morte silenciosa do projeto.
A solução aqui está na criação de estruturas intermediárias: unidades de transição que acompanham a evolução dos projetos, ajudam a maturá-los, conectam stakeholders e preparam o ambiente para adoção.
Essas estruturas funcionam como “pontes vivas” entre o laboratório e a linha. São compostas por pessoas com perfil ambidestro — capazes de entender a lógica do core e da inovação — e que têm autoridade para articular recursos, sensibilizar lideranças e ajustar prazos, métricas e linguagem.
Empresas como a AES Brasil criaram estruturas de “transição operacional”, responsáveis por transformar protótipos em pilotos reais antes de qualquer tentativa de escala. Isso aumentou significativamente o índice de adoção de soluções inovadoras.
4. Pactuar novos contratos de inovação com as lideranças
Por fim, talvez a estratégia mais importante: reconfigurar o pacto entre as lideranças e a organização sobre o que é esperado delas quando o assunto é inovação.
Muitos líderes apoiam a inovação… até ela exigir decisões difíceis. Como abrir mão de orçamento, realocar pessoas ou bancar uma ideia que ainda não tem retorno garantido. Esse apoio condicional gera frustração — tanto nos times quanto nos próprios programas.
É necessário um novo contrato de liderança. Um contrato que explicite:
- Que liderar inovação é atuar como protetor da incerteza, e não como cobrador de certezas;
- Que será preciso tomar decisões com base em hipóteses, não em dados fechados;
- Que o sucesso de um ciclo se mede pelo que se aprendeu — e não apenas pelo que se entregou.
O RH, os sponsors do programa e a alta liderança devem cocriar esse pacto, incorporá-lo aos sistemas de avaliação, e comunicá-lo com consistência.
Se os líderes não forem autorizados — e cobrados — a sustentar o novo, eles continuarão sendo os principais vetores de bloqueio, mesmo sem perceber.
Conclusão: o sistema como aliado da reinvenção
Superar barreiras sistêmicas não é uma tarefa de convencimento. É uma tarefa de redesign organizacional. Significa criar espaços, fluxos, papéis e pactos que protejam o novo enquanto ele ainda é frágil, e o preparem para se tornar parte do próximo normal.
Organizações que se reinventam não são aquelas que têm mais ideias, mas aquelas que constroem sistemas que não sabotam as ideias que já têm.